PARTE 3
Dia 11. 9 fev 4800m – Cratera do vulcão ≅ 5800m. “- Acorda! São quase 4 da manhã! Bora sair.!” Eu tentava acordar André, depois de ter colocado o celular no modo soneca e perdido o alarme de 3h da manhã. André levantou e começamos a fazer nosso café da manhã. Enquanto fazíamos o café, André relatou que não havia conseguido dormir bem. Além do frio, havia o vento soprando na barraca, que o fazia pensar que ela sairia voando. Quanto a mim, estava desmaiado. O café da manhã consistiu em uma geleia de morango congelada, que tentávamos passar no RAP 10 e incrementar com pedaços de atum enlatado. Um café preto com chocolate com gosto de perfume pois, a panela que esquentou a água foi inteligentemente “lavada” por mim com lenço umedecidos. Somada a náusea que nós sentíamos, o café da manhã foi um verdadeiro show de horrores. Levamos esse banquete congelado e perfumado nas mochilas de ataque juntamente com 3 litros de água para cada um, tomamos um chá com alguns biscoitos recheados e partimos.
Com um ganho de altitude
de quase 1000m nesse dia, deveríamos sair cedo se quiséssemos chegar no cume,
voltar para o acampamento, desmontar a barraca e descer até a estrada, para
tentar chegar ainda no mesmo dia em Santiago. Uma logística um tanto quanto
audaciosa, mas era um dos itinerários recomendados no site que pesquisamos.
Conforme relatos lidos e
conversas com os chilenos, estipulamos a chegada ao cume até o meio dia, pois
esse era o horário limite para evitar as tempestades que ocorrem no cume, o que
poderia complicar a descida (os próprios chilenos foram frustrados por isso na
tentativa anterior).
Com o frio pesado a
noite, e sabendo que sairíamos cedo, acabamos dormindo equipado com toda a
roupa de ataque ao cume, excetuando o anorak e a calça impermeável, então nos
arrumarmos para sair não foi tão difícil. Difícil mesmo foi sair do calor da
barraca, e sentir o frio da Cordilheira no meio da madrugada. Como de praxe, já
víamos os chilenos a uma boa distância, morro acima. Eu ainda engatava a 1ª
marcha, me sentindo extremamente cansado e com bastante frio, enquanto André já
mostrava uma disposição diferente dos dias anteriores. A madrugada estava
limpa, os ventos fortes haviam cessado. Somente a luz das headlamps iluminava
naquele momento aquele pedaço da Cordilheira dos Andes: duas mais acima, a dos
chilenos; uma no meio, a de André; e a minha a uns 100 m distante de André. Eu não conseguia imprimir um ritmo de
caminhada bom e avisei André que iria mais devagar, mas manteria contato
visual.
Terminei esta subida
exausto após quase 1h30 de caminhada, e já aparecendo os primeiros raios de
sol. “-Talvez algum ânimo apareça com o nascer do sol!” pensei. Fui ao encontro
de André para planejarmos a passagem de um “nevero” - uma travessia horizontal
com comprimento total de cerca de 300 m coberto de neve, sendo necessário a
utilização dos crampons e piolets. Tentamos comer novamente
alguma coisa, mas o café perfumado e a geleia congelada aumentavam ainda mais
as minhas náuseas. Acabei comendo somente alguns caramelos, tomando alguma água
(ela havia congelado na garrafa) e arrumando os crampons e colocando o piolet
à mãos para iniciar a travessia do nevero.
A esse ponto, os chilenos eram somente alguns
pontinhos coloridos a uma grande distância, naquele ambiente de pedras negras,
neve e um céu azul limpo e com poucas nuvens. Devagar e pacientemente, fomos
atravessando o nevero, tentando não olhar para baixo e tentando não
imaginar o que aconteceria se escorregássemos. Morrer não iríamos,
provavelmente conseguiríamos frear a descida, não antes de nos ralarmos todo no
cascalho logo após a faixa de neve.
A 5400 m, mais uma vez
tive que parar para descansar, e comecei a pensar que a viagem até ali já
estava boa (ou ruim) o suficiente e que poderíamos voltar para casa. Olhei para
o caminho que ainda faltava a ser percorrido. Uma subida interminável,
constante e longa para subir os 400 metros de altitude restantes. Paramos próximo a uma grande pedra para nos
abrigarmos do vento. Eu já não podia nem com minha mochila de ataque, que só
continha os crampons, piolet, alguma comida, 1 garrafa d´água e um fleece.
Foi quando falei para André que pararia ali mesmo. Ele disse que continuaria.
Falei que aguardaria ele retornar para descermos juntos. Arrumei o que tinha de
provisão e passei para ele, deixando uma garrafa de água comigo. O vi se
afastando e num lampejo, com intuito de enviar boas vibrações gritei:
SÓ NÃO VAI MORRER,
CARALHO!
Ele ouviu, acenou. E eu
ali parado, encostado naquela pedra. Comecei a pensar:” talvez ele nem
voltasse. Talvez nem ele, nem os chilenos voltassem e eu ficaria ali para
sempre esperando para descer com alguém.” Depois dessa pequena reflexão que
parecia ter durado horas, eu decidi continuar caminhando o mais devagar que
pudesse, gastando o mínimo de energia, até que eu encontrasse André desistisse
ou no cume chegássemos. Deixei minha mochila encostada na pedra que nada
pesava, mas muito me incomodava, pois queria seguir confortavelmente. Buscaria
na volta E assim nesse ritmo fomos avançando lentamente. Eu comecei a estratégia
de caminhar olhando para os meus pés contando os passos mentalmente até 100 e
depois recomeçar, como tentativa de fazer o cérebro se preocupar em outra
coisa, que não fosse a pergunta “quanto falta para chegar?”.
Acabei entrando em uma espécie de transe e
quando me dei conta, avistei os chilenos descendo em nossa direção. Teriam eles
desistido? Ou o cume já estava perto? Mais alguns minutos (ou horas, a essa
altura eu já estava sem referência temporal) caminhando e eles nos encontraram,
tendo o diálogo sido mais ou menos dessa forma, somado a muita mímica e
gritaria:
“Chegaram no cume?” perguntei em meu espanhol
farofento.
“– Sim, sim “Respondeu um deles.
“- Caminhem rápido pois o
tempo está virando, mas falta um pouco. Não demoramos muito no cume. Muito
vento”. Continuou o outro. (pelo menos foi isso que entendi)
“Ok. Ok! Seguiremos”.
finalizei
Pouco nesse ambiente é
uma coisa relativa, e como não poderia deixar de ser foi extremamente relativa.
Caminhei o “pouco “que faltava xingando, caindo, andando, me arrastando, e
sobretudo me perguntando (e sofrendo ainda mais) porque diabos eu estava ali.
Já havia prometido desde a Bolívia (2 anos antes) que nunca mais faria alta montanha.
E lá estava eu, na mesma ladainha. André estava focado, e pouco conversávamos,
mas ele demonstrava está com mais energia que o pobre diabo que o seguia.
Pouco a pouco (ou muito a
muito) vimos que a subida se tornou um pouco mais plana, e os ventos começavam nos
acertar. A adrenalina tomou conta de nós, e prontamente senti o fôlego voltar.
Esbocei uma caminhada um pouco mais rápida, quase uma corrida, mas os pulmões
não respondiam conforme o necessário. Mas não importava mais a pressa, já deslumbrávamos
a imensa cratera do Vulcão San José, com suas bordas cheias de neve. E ao
olharmos para trás de nós víamos a cadeia de montanhas dos Andes. A montanha
vizinha, o Marmolejo estava em primeiro plano, e outras quais não saberia
nomear.
A paisagem montanhosa era uma mescla de muitos tons de azul , branco e negro. Já estava satisfeito por chegar até ali. Saquei a máquina fotográfica do bolso do anorak. Tive que tirar as luvas mitones para operar a máquina, e minha mão quase congelou instantaneamente. As pontas dos dedos adormeceram, mas consegui bater algumas fotos e um vídeo antes dela descarregar totalmente. Pude gravar o André subindo ainda mais, pela borda da cratera, para chegar no ponto mais alto desta e aí sim o verdadeiro cume, faltando ainda uma boa caminhada para chegar. O vento nos golpeava com violência. Já eram quase 14h, duas horas passadas do nosso tempo limite. Gritei para André voltar, pois o vento e o frio já estavam demais e eu já estava nas últimas Ele acabou acatando e iniciamos a descida. Chegar até ali a quase 5800 m já estava bom demais.
Cratera do vulcão clique (vídeo)
Dia 11. 9 fev Cratera do
vulcão ≅ 5800m - 3130m. Estando um pouco atrasado
com no nosso horário (cerca de 2h de atraso) começamos a descida e até aquele
momento o tempo estava limpo. Ventava bastante, mas com poucas nuvens. Descemos sem problemas, rápido até
comprovando que para baixo todo santo ajuda. Chegamos à pedra onde minha
mochila estava, resgatamo-la e seguimos em direção a volta da travessia do nevero.
Neste ponto, conforme baixávamos de altitude eu melhoraria meu estado, mas
começava a me sentir com muito sono. O apetite já havia voltado e consegui
comer alguma coisa. O André estava tranquilo e pouco falávamos. A esse ponto
começamos a avistar novamente os chilenos (teríamos descido rápido demais ou
eles não estavam com tanta pressa assim de descer?) terminando a travessia do nevero.
Recolocamos
os crampons e piolet e iniciamos a travessia. Nesse ponto eu já
estava começando a misturar realidade e sonho. Estava num estado de letárgico,
e num desses momentos avistei André um pouco mais a frente e como não iria
conseguir alcança-lo. Decidir por bem sentar um pouco para descansar. No meio
da travessia. No nevero. Coloquei o piolet entre as pernas,
apoiei a cabeça nele e cravei os crampons na neve. Acabei cochilando
naquela posição. Por alguns minutos, alguns segundos, não sei ao certo. Mas
quando despertei, assustei-me por acordar naquela paisagem, e em uma posição
nada confortável com relação a vista minha frente: um gigantes escorregador
para o infinito de rochas e pedras. Recompus-me do susto terminei a travessia e
avistei André já quase alcançando os chilenos. Ele andava em um ritmo acelerado,
e bem quieto.
Descida sem problemas,
chegamos ao acampamento 2, começamos a desmontar nossa barraca, comemos algo e
os chilenos nos indagaram o que pretendíamos fazer. Falamos que iríamos tentar
chegar até a estrada no fim do dia e talvez até Santiago. Eram quase 16h. Eles
falaram que era algo impensável e que eles iriam dormir uma noite mais no acampamento.
No dia seguinte, desceriam tudo. Demos de ombros, e seguimos com nosso plano.
A descida incialmente foi
realmente bem rápida. Estávamos concentrados em descer rápido, mas com
segurança. Excetuando os trechos de moraina onde era perigoso demais descer tão
rápido. Em alguns pontos onde a trilha seguia pela moraina, mas existia um trecho
com neve, eu sugeri descer escorregando e freando com o Piolet, ao invés
de ficar pisando em ovos nas rochas soltas. Salvou algum tempo, mas
acabamos ficando molhados e mais cansados.
E André já dava sinais de irritação. Estávamos rápido, porém não o suficiente.
Se aproximava das 19h e
ainda não estava sequer perto do Refúgio onde passamos a 1ª noite. Já estava certo que não chegaríamos na
estrada. André já cogitava em montar a barraca em qualquer lugar, mas eu queria
chegar pelo menos até o refúgio. Ainda havia outro agravante: a nossa água estava
acabando.
Com GPS em mãos, não
seria problema seguir a trilha mesmo no escuro certo? A noite caiu, e nossas headlamps
não eram suficientes para evitar os tropeções, escorregões e caminhadas na
beira de precipícios. O stress começou a tomar conta de nós. André queria a
qualquer custo acampar em qualquer lugar, e eu relutava dizendo que o GPS
mostrava que estávamos chegando e eu queria andar igual um maluco na escuridão.
A ideia de desarmar a mochila e armar a barraca de novo me incomodava. Em algum
ponto da descida, em um trepa-pedras cheias de lacas soltas, eu pedi para que
André esperasse eu descer, para que ele viesse depois que eu estivesse longe da
linha de pedras. Ele ignorou e começou a descer junto comigo, sem antes pisar
em várias pedras abaixo que passaram como mísseis perto de mim.
Continuávamos a descer.
Estávamos acordados desde as 4h da manhã e já era quase 10 da noite. Somado a
isso, a falta de água nos deixava loucos. Ouvíamos o barulho dela escorrendo em
algum ponto abaixo das rochas, mas não conseguíamos encontrá-la. O GPS apontava
que estávamos a 3100m (na altitude do Refúgio), mas não conseguíamos localizá-lo.
Teríamos entrado em vale errado? Estaríamos do outro lado da montanha? Em que
ponto pegamos o caminho errado? Estávamos perdidos?
Por fim, André acabou achando
água para beber em algum ponto onde a água represava. Tomamos água como loucos
e tentamos nos recompor. André e eu conversamos. Aceitamos nossa situação de
perdidos nos Andes, e concordamos que o mais prudente seria montar novamente a
barraca, comer algo e dormir. No dia seguinte tentar se localizar para achar a
saída. Caminhar às cegas, no frio e exaustos não estava adiantando muito.
Dia 12. 10 fev. - 3130m – Santiago Amanheceu. Não se pode dizer que a noite foi mal dormida, pois simplesmente desfalecemos dentro da barraca. Não conseguimos nem mesmo preparar uma refeição decente para dormir. Comemos alguns amendoins e uns restos de biscoito e desmaiamos. Com os primeiros raios de sol irradiando a barraca, despertei e fui ansioso olhar a paisagem fora da barraca. “- André! André! Acorda. Caralho! Tu vai ficar puto!”
Ele levantou meio
atordoado, meio puto por tê-lo acordado, mas foi verificar o que tinha
despertado tanta euforia. Ao colocar a cabeça para fora da barraca e olhar para
o lado direito suas primeiras palavras foram:
- “ Sério? Puta que pariu! Eu peguei água lá!!! Não é possível!!!”
Para nossa surpresa, o lugar onde havíamos coletado água na noite anterior, era num ponto onde a água represa bem em frente ao Refúgio que procurávamos alucinados na noite anterior, e que nos daria uma noite infinitamente mais confortável, abrigada, aquecida e bem alimentada. Talvez pela escuridão, exaustão, pura bizonhice ou o inconsciente espírito de sifudência, não avistamos o Refúgio e acabamos dormindo desconfortavelmente na barraca uma noite a mais. Fizemos um café da manhã reforçado, ainda desacreditados da burrada que havíamos feito, começamos a desmontar acampamento e iniciamos nossa descida rindo ainda do fato inusitado.
A descida até estrada foi bem tranquila, apesar de estarmos bastante cansados da jornada. Não tínhamos tanta pressa, porque o ônibus para Santiago só partiria no fim da tarde, e pagaríamos uma diária mais no aluguel dos equipamentos de qualquer forma. O sol brilhava a pino, e a temperatura já estava ficando bem agradável. Já não tinha mais sintomas de mal de altitude. No caminho ainda pudemos avistar uma raposa andina, passeando calmamente por um campo verde. E passando no Valle de la Engorda (onde a população local leva seus rebanhos para pastar) atravessamos um “campo minado de bodes”. Essa parte foi bem tensa, porque eu temia que a qualquer momento um deles viesse em nossa direção, e em campo aberto com as mochilas cargueiras, seríamos um alvo fácil. Por sorte tudo correu sem problemas e pudemos seguir nosso caminho sem mais contratempos.
Chegamos na estrada, não conseguimos nenhuma carona para chegar até Baños Morales, então tivemos que descer os penosos 7km de estrada de terra, para poder celebrar o fim da aventura com muitas latas de cerveja e empanadas, esperando nosso Busão para Santiago.
Chegando em Santiago foi
partir para o hostel, comer algo e dormir até o meio dia do dia seguinte,
para fazer a entrega dos equipamentos alugados (já que nossos passaportes
estavam penhorados na loja).
Sair de Manaus nessas condições foi
arriscado, com muito perrengue e sem dúvida extremamente divertido. Essa
história sempre é lembrada nas rodas de amigos em Manaus (sempre aumentando ou
diminuindo alguma coisa) mas nunca foge do plano geral. Acredito que a
experiência vivenciada ali foi muito válida e agora eu tenho certeza que nunca mais quero fazer Alta Montanha.(minto, em fev 2020 subi o vulcão Láscar no Atacama, mas é outra história).